O poeta de Baalbeck

por nov 19, 2023

1 – Na cidade de Baalbeck, no ano 112 – Antes de Cristo:

Sentou-se o Emir no seu trono de ouro, decorado por lâmpadas e incensórios. À sua direita e esquerda, sentaram-se os generais e os sacerdotes; e diante dele, os soldados e servos mantiveram-se em pé, como ídolos diante do sol.

Momentos depois, pararam os cantores de cantar, e o Primeiro-Ministro levantou-se e disse, numa voz trêmula de ancião:

– Poderoso Emir, chegou ontem a esta cidade um dos sábios da Índia. Prega doutrinas estranhas de que nunca ouvimos falar, como a transmigração das almas. Diz ele que as almas voltam geração após geração em corpos diferentes, até que atinjam a perfeição e se elevem ao nível dos deuses. E pede para ser apresentado a vós, para vos expor suas ideias.

Abanou o Emir a cabeça e disse com um sorriso:

– Do país da Índia chegam as curiosidades e os milagres. Mandai-o entrar e ouçamos seus argumentos!

Logo em seguida, entrou um homem idoso, moreno, imponente, de olhos grandes e traços descontraídos que anunciavam, antes das palavras, segredos profundos e doutrinas estranhas. Após inclinar-se e pedir permissão para falar, ergueu a cabeça, seus olhos brilharam e começou a expor sua doutrina. Sustentou que as almas passam de um corpo para outro, evoluindo sob circunstâncias por elas escolhidas, de glórias por elas merecidas e crescendo através das alegrias e sofrimentos do amor. Descreveu como as almas mudam de um lugar para outro à procura do aperfeiçoamento, como expiam numa vida crimes cometidos em vidas anteriores e como ceifam num país o que semearam em outro país.

Havendo, o sábio, prolongado por demais suas explicações, o cansaço e o enfado se manifestaram sobre o semblante do Emir. O Primeiro-Ministro aproximou-se do sábio e sussurrou-lhe que deixasse o resto para outra oportunidade.

Recuou então, o sábio, e sentou-se entre os sacerdotes… E seus olhos se fecharam, cansados de fitar os mistérios da existência.

Após um silêncio similar ao êxtase dos profetas, olhou o Emir à direita e à esquerda e perguntou:  “Onde está o nosso poeta? Há tempos que não o vemos… Que lhe terá acontecido? Assistia às nossas audiências todas as noites…”

Respondeu um dos Sacerdotes: “Vi-o a semana passada sentado no templo de Astarté fitando o horizonte com olhos parados e melancólicos, como se tivesse perdido nas nuvens um dos seus poemas.”

Disse um dos capitães: “Vi-o ontem, no parque dos ciprestes e dos salgueiros. Saudei-o, mas ele não me saudou e permaneceu imerso no mar de suas meditações.”

Disse o chefe dos eunucos: “Encontrei-o hoje, no pátio do palácio, pálido e abatido. Havia lágrimas nos seus olhos e suspiros em sua garganta.”

Ordenou, o Emir, com manifesto interesse: “Procurai-o e trazei-o! Estamos preocupados com ele.”

Saíram os escravos e soldados à procura do poeta. O Emir e seus conselheiros permaneceram silenciosos e assombrados. Suas almas sentiram a presença de uma sombra invisível.

Após um momento, voltou o chefe dos eunucos e jogou-se aos pés do Emir, qual um pássaro atingido pela flecha do caçador, e disse, trêmulo: “Encontramos o poeta morto no pátio do palácio.”

Deixou o Emir o seu trono, perturbado, e foi ao pátio, precedido pelos carregadores de tochas e seguido por soldados e sacerdotes. No limiar do parque, por baixo das amendoeiras, a luz amarela das tochas mostrou-lhe um corpo inanimado, estendido na grama como uma rosa murcha.

Disse um cortesão: “Olhai como abraçou sua lira, como se fosse sua enamorada a quem o liga num pacto sagrado.”

Disse um capitão: “Ele continua a fitar as estrelas à procura de um deus desconhecido.”

Disse o chefe dos sacerdotes: “Amanhã enterrá-lo-emos à sombra do templo de Astarté, e os habitantes da cidade seguirão seu caixão, os jovens cantando e as virgens lançando flores. Era um grande poeta! Devemos honrá-lo com um enterro digno dele.”

Abanou o Emir a cabeça sem tirar os olhos do rosto do poeta, velado pela morte, e disse pausadamente: “Não, não…! Desprezamo-lo na vida quando enchia a terra de criações misteriosas e de perfume. Se o honrarmos na morte, os deuses zombarão de nós, e também as ninfas dos prados e dos vales. Enterrai-o aqui mesmo onde exalou a alma e deixai sua lira nos seus braços. E se alguém dentre vós o quiser honrar, que volte para casa e conte aos seus filhos que o Emir desprezou seu poeta, e ele morreu melancólico, isolado e abandonado.”

Depois, olhou em volta de si e perguntou: “Onde está o sábio hindu?”

Adiantou-se, o sábio.

Disse o Emir: “Dize-me, dize-me, ó sábio… Os deuses me devolverão a esta terra como Emir, e o devolverão como poeta? E voltará ele para rimar a existência mais uma vez, e voltarei para lhe alegrar o coração e cumulá-lo de dádivas e honrarias?”

Respondeu o filósofo, e disse: “Tudo o que as almas almejam, as almas alcançarão. A lei que devolve o esplendor da primavera após o inverno, vos devolverá um Príncipe glorioso, e o devolverá, um grande poeta.”

Alegraram-se os traços do Emir, e sua alma se vivificou; depois, voltou ao seu palácio, rememorando as palavras do sábio hindu, e repetindo: “Tudo o que as almas almejam, as almas alcançarão.”

2 . No Cairo, Egito, no Ano 1912 – Após Cristo:

Levantou-se a lua e estendeu seu manto de prata sobre a cidade. O Emir estava sentado no balcão de seu palácio, fitando o firmamento límpido, meditando sobre os acontecimentos dos séculos, interpretando os feitos dos reis e dos conquistadores que passaram diante da majestade da Esfinge e imaginando as procissões dos povos entre as pirâmides e o palácio de Abidin.

Quando o círculo de seus pensamentos se tinha completado, virou-se para seu companheiro e disse-lhe: “Nossa alma, esta noite, tem saudade de poesia. Recita-nos algum poema!”

Inclinou-se o companheiro e começou a declamar um poema de um poeta pré-islâmico. Interrompeu-o o Emir, dizendo: “Declama algo mais recente.”

Inclinou-se o companheiro novamente e começou a declamar um poema do século da Transição. Interrompeu-o o Emir, de novo, e disse: “Mais recente… Mais recente…!

Inclinou-se o companheiro pela terceira vez, e começou a declamar um poema andaluz.

Disse o Emir: “Declama algo de um poeta contemporâneo…!

Passou o companheiro a mão sobre a testa, procurando lembrar-se de tudo o que foi composto pelos poetas do século. Depois, seus olhos brilharam, seu rosto iluminou-se, e ele começou a declamar versos cheios de imagens e sedução, de pensamentos delicados e aliterações inéditas.

O Emir amou os versos e sentiu mãos invisíveis levando-o daquele lugar para um lugar distante, e perguntou: “De quem são esses versos?”

Respondeu o companheiro: “Do poeta de Baalbeck.”

O poeta de Baalbeck…! Palavras estranhas que ondularam no ouvido do Emir e despertaram na sua alma, ecos de aspirações indistintas e desejadas.

O poeta de Baalbeck…! Nome antigo e novo que devolveu à alma do Emir imagens de dias esquecidos, despertou no seu coração sombras de lembranças adormecidas, desenhou perante seus olhos, com traços similares às formas do nevoeiro, a imagem de um moço morto, apertando uma lira nos braços, e cercado por sacerdotes, chefes militares e ministros.

Depois, apagou-se esta visão no olhar do Emir como se desvanecem os sonhos quando chega a madrugada. Levantou-se, caminhou de braços cruzados e os lábios murmurando as palavras do Profeta árabe: Éreis mortos, e Ele vos ressuscitou; e Ele vos mata, e vos ressuscitará outra vez, e a Ele voltareis.”

Virou-se para o companheiro e disse: “Alegra-nos a presença do poeta de Baalbeck em nosso país. Honrá-lo-emos e festejá-lo-emos.” Após um minuto, acrescentou em tom mais baixo: “O poeta é um pássaro estranho. Deixa os espaços celestiais e vem cantar neste mundo. Se não o honrarmos, abre as asas e volta para a sua pátria.”

E quando a noite findou, o espaço retirou sua vestimenta decorada de estrelas e vestiu sua roupa tecida como a luz do dia, enquanto a alma do Emir flutuava ainda entre os mistérios da vida.

                                                                               Gibran Khalil Gibran

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