(Uma existência para pensar e fazer pensar)
Atestam os registros disponíveis que em 06 de dezembro de 1883, no seio de uma família humilde residente na cidade de Becharre, região montanhosa do Líbano, nascera um menino batizado de Gibran Khalil Gibran, que viria a ostentar os títulos, nada mais nada menos, que o de mais célebre escritor e pintor do mundo árabe contemporâneo, bem como o de maior criador de parábolas depois de nada menos que Jesus Cristo.
Em consonância com as curiosidades de vida dos grandes nomes da humanidade, dizem as mesmas fontes que, já aos oito anos de idade, enquanto um temporal varria a sua cidade, Gibran olhara fascinado para a natureza em fúria e se pusera a correr com os ventos, sem cogitar qualquer possibilidade de perigo. Quando repreendido por sua mãe, simplesmente lhe respondera: “Mas, mãe…! Eu gosto das tempestades. Gosto delas… Gosto!” (Seu melhor livro em árabe receberia o título de Temporais).
Em 1894, aos onze anos, por motivos aparentemente internos, na companhia da sua mãe, um irmão, as duas irmãs menos o pai, daria início a uma infindável relação com os Estados Unidos da América do Norte, onde até os seus últimos dias viveria, dividido entre as cidades de Boston e Nova Iorque, mas retornando ao Líbano quatro anos depois para completar seus estudos em árabe, matriculando-se numa instituição de ensino denominada de “Colégio da Sabedoria”. Dizem que a essa época, diante de uma tentativa de o diretor da escola acalmar a sua ambição impaciente mediante a lembrança de que uma escada deveria ser galgada degrau por degrau, Gibran teria reagido retrucando-lhe que “as águias não usavam escadas”.
A essa época, já propagava “que havia dentro de si um poder impaciente por se revelar e que a este mundo viera com uma força mental excepcional que procurava se expressar”. Em cartas a amigos, encontravam-se declarações do tipo: “Sinto que há nas profundezas de meu coração uma grande força que quer se manifestar, mas ainda é incapaz de fazê-lo”. Meus sentimentos são como as marés de um oceano, mas a minha alma é como uma águia de asas partidas: sofre dolorosamente quando vê os pássaros voar no espaço porque não pode, ainda, imitá-los. Futuramente, outra das suas mais importantes obras receberia o título de “Asas Partidas”.
Aos 15 anos, tentara dar forma a essa força impaciente por se manifestar e faz o primeiro rascunho de O Profeta. Ao ler para a sua mãe alguns trechos do livro através do qual “transformaria o mundo”, ouve-lhe as seguintes palavras: “É um bom trabalho, Gibran, mas seu tempo ainda não chegou. Deixa-o amadurecer!”
Aceitara o conselho, mas O Profeta jamais sairia da sua pauta, de onde igualmente sairiam inúmeras obras de sucesso, tanto artísticas quanto literárias, enquanto a sua obra-prima amadurecia na sua mente.
Em 1910 começaria a redigi-lo em inglês. Enquanto suas obras em árabe já o cobriam de glórias, confidenciava aos amigos mais próximos que os seus vinte e poucos anos de escritor e pintor nada mais eram que um tempo de preparação para escrever uma obra que “mereceria ficar à face do sol”. Depois de reescrevê-lo cinco vezes, caracterizando uma gestação de 25 anos, finaliza-o em 1923 e o libera para a edição, suspirando a célebre frase: “Enfim, pronunciei a palavra que carrego desde que nasci e que vim a este mundo para pronunciar”. A uma amiga espiritual, confidenciaria: “Por que escrevi e publiquei tantos livros? Eu nasci para viver e escrever um único livro, um pequeno livro. Nasci para viver, sofrer e pronunciar uma única palavra, vívida e alada”.
Ratificando um velho discurso dos nossos poetas contemporâneos, segundo o qual um poeta só é grande se sofrer, a vida pessoal de Gibran fora recheada de motivos para levá-lo à expressividade que o levaram. Envolvido desde os primeiros passos numa vida tocada pelo coração, procurou exercer uma liderança dos fracos e oprimidos pelo clero e latifundiários da época, usando a literatura como uma arma de combate à opressão, culminando com um revide de um bispo da sua cidade natal, proibindo que Gibran, um inconfundível anticlerical, desposasse a sua sobrinha de nome Hala Daer, ironicamente o grande amor da sua vida, cuja ocorrência seria o tema central de outra das suas maiores produções literárias: Asas Partidas, em 1912, um relato da sua vida amorosa com Hala Daer, a quem se referiu como “a primeira mulher a despertar o seu coração por seus encantos, e a guiá-lo ao paraíso dos sentimentos puros… Que fora ela quem o ensinara, por sua beleza, a adorar a beleza”.
Idealista, apaixonado, ambicioso, solitário, feliz e triunfante em seu trabalho, mas perseguindo uma felicidade sentimental que sempre lhe fugia, fazia dos seus personagens os seus heróis, como O Profeta (o maior deles), Khalil, o Ateu, João, o Louco, Jesus, o Filho do Homem, Asas Partidas etc., envolvidos em tramas onde muito sofriam para fazerem triunfar um determinado ideal, já que Gibran era um idealista. Havia uma unidade entre a sua vida e a sua obra, e defendia uma convicção de que viera ao mundo para conciliar as suas imperfeições.
Fiel às suas pregações, Gibran viveu a realidade das suas obras. Nunca se casou, nunca se interessou por negócios, dedicou-se exclusivamente à pintura e à literatura. Suas residências foram as mais simples possível tanto em Paris quanto em Boston ou Nova Iorque. Seu modo de viver não se alterou nem quando a venda de seus livros e quadros o tornou milionário.
À beira da morte numa crise pulmonar, num leito do Hospital de São Vicente, Nova Iorque, em 10 de abril de 1931, aos 48 anos de idade portanto, teria dito: “Aspiro a eternidade porque lá encontrarei meus poemas não escritos e meus quadros não pintados”. Num dado momento do seu velório, em Boston, uma mulher toda vestida de branco, que seria a própria Hala Daer, teria aberto caminho até o corpo de Gibran e lhe depositado um beijo nos lábios frios e se retirado de imediato. Em 21 Ago 1931 os restos mortais do mais célebre escritor e pintor do mundo árabe contemporâneo, mediante iniciativa de sua irmã Mariana, chegaria à Beirute e levado até Becharre onde, sob efusivas manifestações populares, fora enterrado na vertente de uma colina de silêncio e beleza onde Gibran teria sonhado viver os seus últimos dias. Sob o seu túmulo, a simples inscrição: “Aqui entre nós, dorme Gibran”.
Silvio Cayua (Texto publicado na coletânea Policromias, da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil/Ceará de nº 10 – 2018)
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