A casa da ladeira – Lembranças de uma história real

por out 17, 2021


Havia, à frente da velha casa da ladeira, duas caramboleiras entrelaçadas que, nos dias de sol, despejavam pelo chão uma inquieta sombra que passeava de um flanco a outro do terreno. Nem dá para imaginar o número de vezes em que eu, por ali disfarçado, deixei-me dominar pelos mais desvairados sonhos de um garoto levado. Eram torneadas pernas que iam… Eram douradas pernas que vinham. Eram insinuantes rebolados que se locomoviam ladeira acima… Eram provocativas curvas que serpenteavam ladeira abaixo.

Para desse agradável cenário desfrutar servia-me, como encosto, de uma desengonçada mureta que protegia as pessoas dos perigos da elevação da calçada interna: local onde, costumeiramente, aproveitava eu para descansar as inquietas pernas e monitorar o que acontecia no pedaço.

Dentre as inúmeras residências do meu existir, é a mais doce lembrança que faz morada dentro de mim. Fecho os olhos e tudo se me mostra, exatamente, como nos velhos tempos. Da sua construção, recordo-me até do nome do pedreiro – o pouco dinheiro não permitiu que minha mãe contratasse um engenheiro.

O flanco direito – formidável janela para o que de mais marcante havia no meu mundo de então – mostrava-me, em destaque, uma velha olaria, em cujo muro esbarrava o final da Rua Santa Luzia. Por trás, qual autêntico guardião, um velho buritizeiro que, sem aviso prévio, há muito tempo deixara de dar frutos. Limitava-se, através das suas folhas pontiagudas, a sinalizar a intensidade dos ventos, para que eu pudesse empinar meus papagaios de papel. Ao longe – à direita e à esquerda –, duas discretas  serrarias:  principais  produtoras  da  matéria-prima das confusas palafitas que compunham grande parte das moradias. Mas, não apenas disso o flanco direito vivia. Numa posição medianeira, terreno a dentro, havia uma infrutífera pitombeira, cuja missão era sombrear o quarto de minha mãe. Daquela janela contemplei, certa vez, um quadro sombrio ainda presente na minha memória, que me mostrava, no aconchego de galhos escorregadios e folhas molhadas, um pobre passarinho que se digladiava com o frio, após a passagem de um temporal. A vida do coitado parecia estar chegando ao fim.

Mais ao fundo, uma lúgubre e robusta jaqueira que, rotineiramente, parecia querer antecipar o final de tarde e a retardar o início do dia. Não sei por que, algo de muito estranho nela parecia haver. Sempre a olhei desconfiado…! Insinuava-me abrigar seres estranhos nas trevas precoces que a envolviam. Ainda me causam arrepios as lembranças de algo que, certa vez, teria corrido atrás de mim, e que me levara ao desmaio na metade da escada que dava acesso à cozinha da casa. Ainda hoje, fechando os olhos e retrocedendo no tempo, as mesmas imagens consigo resgatar. O resultado é esse arrepio que me dá!

No fundo do quintal, o dispositivo dos vegetais era meio tumultuado. Lembro-me, com perfeição, de uma esguia goiabeira que a tudo teria comandado. Utilizando-se, matreiramente, de seus braços longilíneos e resistentes, apoiava-se sobre os arbustos inferiores que compunham uma espécie de farmácia natural de minha mãe. E por ali ia ficando, ficando… Com ela ninguém mexia, temendo os danos que uma poda pudesse causar.

Contorneando o cercado de trapos de madeira, chegávamos ao flanco esquerdo, onde deparávamos uma imponente pupunheira. Na realidade, duas… Ou três. Sei lá! A velha memória de hoje já não me deixa precisar. Tenho a impressão de que o número variava com o passar do tempo. Parece-me que, antes de morrer, uma velha árvore, cuidadosamente, fazia germinar outra; ou duas outras… E assim sucessivamente. Fato é que sempre havia uma pupunheira com seus frutos fantásticos, a abastecer os incontáveis cozinhares das panelas de minha mãe. Vivia eu, monitorando o amadurecimento dos cachos. Era eu quem os condenava à morte! Ainda bem que, àquela época, nem se falava em palmito.

No ponto médio do terreno – à altura da já citada pitombeira que ficava do outro lado – encontrávamos um teimoso cajueiro que resolvera instalar-se num espaço de meio metro entre a cerca e a cobertura do barraco. Ali fincara os pés e subira em direção ao telhado de palhas, apenas dando a impressão de que dele se esquivaria. Era essa, talvez, a mais complicada das árvores do simplório pomar.  Com tanto espaço  no terreno,  cismou de brotar,  exatamente,  no mais inadequado
lugar. Ostentando numerosos frutos, quais sinos amarelados dependurados numa árvore de natal, vivia a desafiar a destreza da molecada que desejasse dos seus frutos provar. Decididamente, jamais facilitou as coisas…!

Mais à frente, quase retornando à área frontal da casa, encontrávamos um altivo pinheiro que minha mãe trouxera de uma viagem que fizera ao Rio de Janeiro. Era um estranho no ninho. Chegara com pinta de árvore de natal, mas, como que por rebeldia, crescera tanto que se desvinculara do objetivo principal. Pouco depois, nem dava mais para ornamentá-lo nos períodos natalinos. Subira tanto que passara a desafiar a quem ousasse pensar em podá-lo – principalmente pela sua proximidade aos fios da rede de energia elétrica. Virou parceiro e confidente de um velho poste, fincado no lado de fora. Foi ficando, ficando… Até não sei quando.

Não por acaso, deixei para o final a descrição da peça principal desse pequeno sítio que abrigava a casa dos meus sonhos. Em inquestionável destaque, partindo de um ponto pouco abaixo da posição intermediária do flanco direito, encontrava-se a dona de todo o pedaço: a velha mangueira, com não sei quantos anos a mais que minha idade. Sombreando a segunda metade do telhado, parte da pitombeira, parte da jaqueira e lambendo alguns galhos do cajueiro, era o principal destaque arbóreo do lugar. Era quem mais aparecia para quem, de longe, se pusesse a observar. Graças à sua imponência, a cobertura da casa ficava menos exposta ao sol ardente. Em compensação, na época da frutificação, difícil era dormir, em decorrência dos impactos das mangas apedrejadas no telhado – mais ainda em noites chuvosas. Mas quem se incomodava com isso? Minha inquietação juvenil, muitas vezes, nem me deixava aguardar a chuva passar, ou o dia amanhecer, para recolher os frutos espalhados pelo chão. Tais circunstâncias deixaram gravadas na minha memória inusitados momentos de diversão. Naquela época tudo eu podia! Bons tempos em que não precisava me preocupar com problemas de saúde.

Mas o bonde da vida passou, nele peguei carona… E tudo ficou pra trás!
 
Hoje, movido por uma gigantesca atração que o tempo não foi capaz de apagar, sempre retorno ao lugar… Passo em frente ao terreno que, um dia abrigara a velha casa da ladeira, e a sua ausência me faz surgir aquele costumeiro nó na base da garganta. O que ali se vê é uma espécie de mercado. Até o arrogante pinheiro foi destronado. O único sobrevivente das motosserras do progresso é o velho poste de cimento armado que, com ares de desgosto, põe-se a me perguntar por onde eu tenho andado… E por que deixei que tudo se tivesse acabado. 
 
* Texto premiado no concurso “Prêmio de Literatura Unifor 2009 – Categoria Crônicas – e publicado na respectiva antologia.”

Silvio Cayua

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