“Pelos Caminhos…”, segundo o palestrante Edilson Valente.

por set 14, 2021



Quando percebi, estrava dentro de uma partida de futebol. Não uma partida qualquer, mas uma partida que imitava “O jogo da vida”. Entrei na partida de forma despretensiosa, pois abri o livro de forma aleatória, sem preocupação em fazer seleção no cardápio.

Depois parti para o menu e selecionei, de propósito, o enredo de “Eu só queria ter uma canoa”. A falada e divulgada canoa. A saudosa canoa. Ora desejada; ora abandonada; ora rememorada. Tive muitas canoas nas quais embarquei e depois abandonei por uma margem qualquer dos rios que percorri na minha vida.

E no folhear das páginas seguintes, fui criando gosto pelas narrativas. Rimas que formavam parágrafos; sonetos destrinchados em versos.

Apreciei a paixão do autor pela boa escrita. Bom militar, senti que ele gosta de enfileirar as letras na sua frente, como se fossem uma tropa; mas que adora brincar com elas, como criança em parque de diversão.

Daí resulta uma narrativa apaixonante. Senti traços de Dalcídio Jurandir, no afeto pelo regionalismo. O amor pelas coisas do lugar, como Ariano Suassuna e me deliciei com uma escrita firme e marcante, como em um traço de impressionismo.

Encontrei textos espíritas e de espíritos que usaram as narrativas do poeta para se apresentarem a mim. Eu, sem pressa, fui conversando com cada um, envolvido na leitura com a tranquilidade de um aposentado que curte uma xícara de café na varanda, contemplando os montes que se perdem na imensidão do olhar.

Impossível não desconfiar da simpatia do nobre autor em dialogar com a morte. Essa predileção salta aos olhos ao escrever sobre o “Cidadão do céu”, mas também sobre o “Cidadão da terra”. Fiquei na desconfiança de um certo dissabor pela vida, mas custo a acreditar nessa infundada teoria, ao ver o nobre escritor pedalar serelepe pelas ruas da bela Fortaleza.

Seus “Olhos de despedida” me trouxeram lembranças da minha despedida de Belém, ao mudar para o sul do Brasil. Na hora do embarque eu estava posicionado na exata fronteira onde habita a alegria e a tristeza. Lembrei que, naquele dia, meu primeiro sorriso bebeu minha última lágrima. A narrativa da viagem teve a trilha sonora da canção de despedida que cantei para mim, para celebrar o paradoxo do luto e da vida nova na canção “Aquarela”, de Toquinho. O trecho que me veio à memória foi: “Um menino caminha e caminhando chega no muro / e ali mais em frente, a esperar pela gente o futuro está / e o futuro é uma astronave que tentamos pilotar / não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar / sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar”. Amei vasculhar essas memórias que já estavam secretamente engavetadas dentro de mim.

Por várias vezes sentei ao seu lado para ler. Minha criança adora. A do poeta também. Também fui menino da Amazônia. Nasci em Belém, mas circulei por várias cidades do interior, incluindo Cametá. Quando eu percebi, estava brincando com o Silvio, ou melhor, com o Cayua. Fomos fazer uma peconha para apanhar açaí; armar um cacuri; fazer isca para um mundé; fazer uma tapagem de igarapé; cortar uma envira; traçar um tupé; socar arroz e café no pilão; bolo de farinha para armar a camarueira; apanhar frutas com zagaia; extrair tucupi no tipiti; fazer beiju; tomar café preto com farinha; tirar estrepe do pé com espinho de limoeiro; visitar um paredão. Tudo isso roendo buriti e chupando fibra de tucumã com os dentes amarelados. Fui levado a essa sensação em “Devolva-me ao meu lugar” e em “Caboclo beira-rio”.

Em “O dia seguinte”, eu senti o que nunca sentirei: as sensações da despedida do último dia, oficial, de trabalho. E percebi que, na vida, nunca me coloquei nessa posição e condição. Não sei se certo ou errado, mas, como diria o nobre Ariano, pelo verso de Chicó: “Só sei que foi assim”.

A liberdade destruída, asfixiada e aniquilada por um lúgubre final. Triste momento em que ela é perdida e a respiração se esgota. Senti a morte da “Libélula de cauda vermelha” como quem traga um último gole de cicuta, asfixiado por tão desonroso final.

Revigorar os estímulos para contar histórias foi o que encontrei em “As nossas histórias”. Relembrar o valor de histórias valiosas, de quem escolhe falar de ideias, e não de pessoas, é um néctar da colmeia que criei para alimentar Minh’ alma.

Na premiada “Da janela da minha vida”, encontrei a trama do sofrimento humano. A leitura me fez lembrar que essa temática é uma das mais antigas na humanidade. De Aristóteles a Nietzsche, há relatos de como o sofrimento pode liberar o sofrimento. O tema pode ser encontrado em uma linda canção de Chico ou mesmo em uma rima pobre das rainhas sertanejas Maiara e Maraisa. Opto pelo meu amigo poeta, ao lado de Chico. Questão de gosto.

Em “Projetos de vida”, criei identidade com muitas histórias ali narradas. Muitas vezes sinto o corpo cansado. Impossível jogar uma partida vôlei e saltar como passarinho a alcançar o ponto alto da rede, mas a mente não cansa de voar e fazer. Abandono alguns, mas sigo na jornada, inspirado por essa narrativa que me convida a contar novas histórias no futuro.

Em “Um dia”, tive meu mais poético encontro com a morte. Fico aqui a me perguntar se tantas narrativas, galanteios e lirismos do poeta sobre a morte, não seriam apenas estratégias que ele lança no sentido de elas o manterem vivo, apenas para não silenciar seus elogios. Fico imaginando seu semblante taciturno no momento da composição da escrita. Suspeito que brinca de acariciar a morte para, no fundo, celebrar com a vida.

Em dado momento, vi minha imagem refletida no espelho da narrativa. Senti-me orgulhoso. Quando li “O sonhador”, fui me aquietando na cadeira enquanto a leitura discorria para dentro de mim. Eu sentia a felicidade de uma criança que bebe, sem ter que dividir com ninguém, um iogurte. Sorri ao ler que ‘um grande sonhador é um exímio viajante’. Viajei nos meus melhores sonhos enquanto uma gota de iogurte descia pelo canto direito do meu sorriso.

Fiquei imaginando uma cena de “Catraieiro”. Li duas vezes para tentar reviver nas minhas próprias fantasias, a cena do grito que me soava como um canto de desespero de uma criança abandonada num igarapé, com medo de a morte chegar, ou algo do gênero. Foi por aí que lembrei de uma cena em que, menino, quase morri num rio da Amazônia e fui salvo por um catraieiro, o Francisco, que me puxou pela ponta dos dedos e me livrou da angústia revivida nas letras de agora.

Ter clareza do valor e da importância da sua identidade; não se deixar envolver por devaneios do valor de ter posses; conseguir esquadrinhar a exata fronteira que separa o ser – fazer – ter foi o meu grande aprendizado em “Ser matuto ou ser doutor”. Eu mesmo, por um tempo, me perdi nos trâmites da vaidade acadêmica. Felizmente, a maturidade me trouxe à tona para respirar e perceber o valor do que chamo de “O luxo da vida simples”, o luxo de ser quem sou.

Eu sou filho de Maria Lucrécia. Então nem preciso dizer como adorei ler “As minhas Marias”. Há muitos significados em uma simples frase.

Impossível não relembrar da infância feliz e despreocupada na periferia de Belém em “Papagaios de papel”. Como canta Chico, ali era um ‘tempo de delicadeza’. Na minha doce imaginação, eu voava junto com as rabiolas, curicas e papagaios. Havia muita alegria no tempo da doce irresponsabilidade. No tempo em que as ruas eram uma extensão das casas, e não um laboratório de velocidades. Bons tempos! – Grita a velhice dentro de mim.

Experimentei um delicioso encontro com parte da minha vida. Eu também mergulhei em rios e igarapés da Amazônia, apanhei açaí de peconha, armei cacuri, fiz isca para mundé, revistei paredão em busca de peixe, coloquei camarureira, tirei tucupi no tipiti, soquei café e arroz no pilão e tirei muito estrepe do pé com espinho de limoeiro. Fazia meus brinquedos… E foi assim, refazendo minhas lembranças que reencontrei parte de mim em “Saudades da minha infância”.

Ao ler a narrativa de “O Homem” fui construindo a minha auto versão. Minha mente viajou para o dia da minha criação. Peguei a matéria prima e mergulhei, com vontade, as mãos na argila. Fui dando forma ao meu ser com uma alegria no rosto sem igual, sentia-me feliz como uma noiva. Ao final da construção, olhei para o formato. Gostei do que vi. Soprei vida nas minhas narinas, saí por aí semeando vida. Fiquei tão feliz comigo mesmo, que me reproduzi em quatro: Edilson Jr, Valentina, Thales e Dante. Sou criatura e cocriador.

Ela estava sentada e centrada em minha frente com sua rigidez peculiar. Tentei fingir que não lhe via, mas é impossível ignorar a sua presença, pois ela me observava com a continência de uma sentinela em seu primeiro dia de guarda noturna. Ao mesmo tempo que me observava de fora, ela gritava dentro de mim. Foi dessa forma o encontro entre “Minha razão e eu”. Eu a sentia dentro e fora de mim ao mesmo tempo. Foi essa a percepção que tive no contato com a narrativa. Segui fazendo poesia dentro de mim e a acalantar minh’ alma naquela bela manhã de fim de inverno.

Uma coisa que nunca vou deixar de ter, não sei se por virtude ou por vício, é a “Sede de recomeçar”. Já fiz várias vezes na vida, e em variadas cenas: casamento, trabalho, saúde etc. Na fronteira inexata, entre a virtude e o vício, sigo recomeçando e sinto, tal qual o poeta, que quero fugir de mim, dos meus medos e recomeçar sempre que preciso for.

Em “Levitação” percebi a curiosa sensação de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Não experimentei a sensação tal qual o poeta, mas sempre me encontro com o corpo em um lugar, e minha mente levitando em devaneios sem fim.

A sensação de ser um estranho em outro local, foi o que senti ao ler “O imigrante”. Quando vim para o sul com a família, passei por muitos estranhamentos: clima, alimentação, hábitos etc.. Ainda hoje, passados cinco anos, percebo o desafio de mudar, até que a mudança mude de vez dentro de mim. Ser imigrante é habitar a fronteira entre a ilusória segurança do passado e a abertura para a fronteira perpétua do desconhecido.

Voltei a sentir uma certa agrura do poeta ao ler “Apologia ao passado”. Terminei a leitura com a suspeita de que, amante da vida, essa narrativa é somente um recurso literário para agradar ao seu público. Quem sabe não estou acometido de um engano e o poeta trouxe à tona as dores secretamente embutidas em sua alma, agora exposta, sem medo, na breve narrativa. Quem sabe não estou especulando ao vento, coisas íntimas das quais nada sei. Quem sabe não estou instigando o poeta a mais um diálogo. Quem sabe não é o poeta buscando “lidar com o que não pode evitar”, como dizia Nietzsche. Quem sabe não devo parar? Quem sabe?

Uma personagem fictícia de uma cidade fictícia, mas que existe na vida real. Personagens fictícios vivem desfilando por aí. A personagem é uma cidade do interior do interior do Ceará. Ela se chama Trapiá e é quem dá vida aos “Saberes da vida”. Uma narrativa que resgatou em mim o orgulho de ser quem sou e das histórias que vivi, dos causos que contei e das pessoas com quem compartilhei minha existência curta, porém nobre. Esse será o sentimento que terei ao ir. E um dia eu irei, mas irei acalentando a Trapiá que habita dentro de mim.

Sonhar acordado com um “Grande castelo” foi uma aventura nessa jornada. Já construí vários castelos, já habitei em muitos e já vi vários desmoronarem na minha vida. Mas confesso que não desisto. Há uma leitura que adoro e que fala de castelos: O cavaleiro preso na armadura. Essa leitura me ajuda a percorrer castelos que me trazem a libertação de muitas armaduras que tenho na vida, em um exercício de libertação.

Em “Desfigurando”, fiz contato com a minha frustração de não tocar um violão.

Visitar lugares novos e ter a coragem de fazer valer a pena é uma atividade que adoro. Muito curiosa a sensação que senti ao ler a narrativa intitulada “Desvendando o conhecido”. Fiquei com a sensação, que sempre me acompanha, de que fazer descobertas e abrir-se ao desconhecido é um prazer que podemos obter indo para uma cidade bem distante, ou mesmo para as páginas de um belo livro.

Eu já sabia que Deus é maravilhoso. Mas não sabia o que ele me conduziria a um emocionante final de leitura da obra, após mais de dois meses de adorável companhia. A leitura de “Minha emoção e eu” fez-me sentir como se eu estivesse em frente ao oráculo de Delfos, na Grécia, lendo a famosa frase ‘Conhece-te a ti mesmo’. Sou um ser que não deseja se abandonar nos braços da razão. Quero que ela esteja por perto, mas não no comando. A emoção é o produto do que sou e desejo ser. É também matéria-prima do meu trabalho. Vi minha imagem refletida na narrativa. Minha mente, de tão alegre, desfilava uma ode em autolouvor.

Edilson Valente.

Florianópolis.

Final de inverno de 2021

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