A velha memória já não me deixa precisar…
Mas vagas lembranças me dão conta de que havia no centro da Praça da Sé (Pedro II para alguns) um jovem cajueiro que parecia corresponder aos meus olhares sempre que por ali passava.
– Bom dia, meu cajueiro! – Mentalizava eu, com jeito desconfiado de quem se cuidava para não ser mal interpretado por quem, porventura, me observasse.
Naturalmente, ele nada respondia. Minha fértil imaginação, no entanto, considerava que uma mexida de galhos ao acaso ou, quem sabe, por obra de um vento travesso que por ali passasse, era a resposta com a qual a minha discreta loucura se dava por satisfeita.
A dinâmica da nossa relação dava-se nos moldes de um amor não correspondido. A caminho do centro comercial, sempre lembrava que a ele poderia cumprimentar e tinha a estranha certeza de que ele levava a vida a me esperar. Quando às pressas por ali passava, só demonstrava percebê-lo ao desviar lateralmente a cabeça para evitar o contato direto com os seus galhos mais baixos. Ante a minha esquiva, num gesto típico de quem ama, pulverizava-me com o doce aroma de suas flores umedecidas pelo orvalho da noite.
Na volta, sempre menos apressado, já de longe me punha a contemplar a sua jovialidade, a sua alegria manifestada pela agitação das suas folhas ao sabor dos ventos que sopravam das bandas da catedral. Para me redimir da deselegante atitude anterior, roçava-lhe com a cabeça, as folhas mais baixas, acariciando-as e inalando aquele cheirinho gostoso de flores de caju.
Já o evidenciava desde a esquina da Castro e Silva com a General Bezerril, nos seus não mais que dois metros de altura, fugindo da sombra de uma robusta sempre verde que lhe surrupiava a incidência direta dos raios solares. Inúmeras foram as vezes em que me escapou um discreto sorriso ante a sua postura desengonçada de mancha verde se esparramando para o meio da rua, em busca dos raios de sol.
Sorte de quem desfrutava de um conforto gratuito de bancos de madeira à sua sombra!
Sempre distingui, claramente, os dois momentos do seu existir: o anacoretismo dos amanheceres com aquele jeito de abandono, e a descontração ao longo dos dias, embalado pela rotineira movimentação de uma praça que parecia pedir socorro. Lamentava a insignificância a ele imposta, como se perdido estivesse em meio a três bancas de revistas, um punhado de árvores mais robustas que lhe surrupiavam os nutrientes, quatro orelhões indiscretos que lhe roubavam a privacidade, uma série de bancos de madeira entregues às mais variadas, e nem sempre nobres, destinações, e até uma estátua depredada de Dom Pedro II que, voltada para um estranho pedaço
de rua com três nomes (Alberto Nepomuceno, Conde Deu e Sena Madureira), virava-lhe as costas, preferindo desfrutar das imagens do sol nascente e da igreja – talvez rogando proteção divina contra vândalos que, diuturnamente, depredavam um patrimônio público.
Mas lá estava ele – até não sei quando, pois, a própria vida me privou de testemunhar o espetáculo da sua extinção. Sei que se vivo estivesse, muita história ele teria para contar. Muito aprendera, por exemplo, das artimanhas de comércio alternativo, pois ali se concentravam os teimosos concorrentes do Mercado Central. Era um fica não fica interminável, numa teimosa queda de braço com a Prefeitura…! Aprendera de moda, de protestos políticos – partidários, de movimentos estudantis, de multa de trânsito… Ah… Ali, na General Bezerril – entre a Dr. João Moreira e a Castro e Silva – a velha Autarquia Municipal de Trânsito fazia o seu costumeiro festival de autuações, incrementando o que se convencionou chamar de indústria da multa, mas o pessoal não arredava o pé. Todos os dias era aquele bafafá entre motoristas rebeldes e guardas de trânsito. Sabia também, o jovem cajueiro, dos mais variados tipos de contravenções noturnas, como descuidismos, prostituição, consumo de drogas ilícitas etc.
Paradoxalmente, amanhecia sob as garras de um teimoso pregador candidato a sabia-se lá o quê, que insistia em exercitar a sua retórica bem aos seus pés, revezando-se com uma mulher que o substituía no verbo sempre que lhe faltava fôlego, embora não mais que cinco pessoas lhe dessem ouvidos, incluindo-se transeuntes como eu, os funcionários das bancas de revistas das proximidades e um e outro comerciante instalado ao alcance das suas caixas de som.
O pobre cajueiro, naturalmente, também não tinha como deles se esquivar. Aprendera o caminho das pedras na marra, embora nada de tudo lhe tenha sido útil.
Hoje, a passos curtos e lentos, continuo a transitar pelo que restou da velha Praça da Sé, adequando-me às inexplicáveis trajetórias impostas pelas intermináveis modernizações do lugar. Talvez por força do hábito ou estranha loucura, ainda varro com os olhos todo o ambiente ao por ali passar, como a procurar por qualquer indício de saudade que o amigo cajueiro tenha deixado por lá.
Coisas da modernidade… E da idade.
Silvio Cayua
– Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará (Almece) – Sócio Efetivo – Cad. 13; Academia Feminino de Letras do Ceará (Afelce) – Sócio Honorário; Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB) – Sócio Colaborador e Grupo Literário Terça-feira em prosa e Verso
Texto publicado na Revista JANGADA (Ano XVIII – 2º Semestre/2024 – Nº37) da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno.
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