Eu só queria ter uma canoa (novo berço)

por set 27, 2024

Eu nasci pobre. Pobre menino pobre a vida me fez…! Imenso era o meu nada; e o meu tudo era o nada de cada um de vocês. Nada também tinha a dar – mas muito a solicitar. O meu futuro era um buraco no escuro – uma incógnita do outro lado do muro. No meu projeto de vida boa, eu só precisava de uma canoa.

E sonhando e sonhando acordado, eu seguia. Mais derrotas que vitórias colecionando, eu vivia. Eram assim os meus dias. Vivendo, crescendo, precocemente envelhecendo e já discretamente morrendo. Aprendi o modesto festejar para poder me enganar. E mudando verdades, varei as idades com miragens à-toa. Mas, no fundo, no fundo, eu só queria ter uma canoa.

Confuso eu ficava, ao tentar detectar que parte do corpo mais me condenava àquele eterno penar. A barriga doía… o coração também! Alimento eu pedia…A alimentar-me, ninguém. De desamor eu morria… A me socorrer, jamais, alguém aparecia. Em silêncio, chorava-as dores do corpo e da mente administrava. Mesmo assim, ninguém o meu coração afagava. Mas com a tal canoa eu, eternamente, sonhava.

Do céu estrelado, com muita frequência, só as primeiras estrelas eu via. De tão desolado, bem cedo eu dormia. O meu cada dia um tempo maior possuía, pois cedo se abria e, à boca da noite eu logo sumia. Nem a lua vadia me achava nas noites vazias. Mas o sonho com a bendita canoa a tudo resistia.

E o tempo passou. O bonde da vida chegou e, alhures, a mim e à minha ansiedade levou. O meu velho sonho, num canto esperando, ficou. Uma vida confusa, de miragens exóticas, em mim se instalou e a singela canoa, na minha memória sobrou.

Não mais canoeiro. Passei a querer ser doutor. E o meu grande alvo, por mim, esquecido ficou.

Deixei o meu chão. Aquele presente, então recusado, se fez meu passado.  Nos saltos ousados de um novo presente, passei a andar de avião. De terno e gravata – ou roupas de seda – deixei para trás o meu velho torrão e me complicando em alvos gerados por dores da mente, troquei a minha paz, ao ver à minha frente um mundo de sonhos para me alegrar o coração. Naquele momento, à velha canoa, a minha razão disse não.

Não mais canoei. Por regionalismos não mais me expressei. Descalço nas ruas não mais caminhei. Da vida simplória eu abdiquei. Das águas das chuvas e das velhas cacimbas deixei de beber. Pular de motor, das jangadas…e nas águas turvas ou negras, dos rios, deixei de nadar. Praia de verdade, só as brancas areias da orla do mar. Parceiro do tédio, das doces lembranças se fez meu viver. Ser dono de barco ou andar de canoa não mais cogitei.

Mas hoje, cansado, me sinto um escravo da vida que eu fiz. Até descobri: nem mais direciono o meu próprio nariz. Se saio às ruas, para casa não sei se consigo voltar. É roubo, é assalto, é perigo no ar. Congestionamento…. Não dá para aguentar! É o carro que quebra, é o pneu furado…. Às vezes nem posso parar para arrumar, para não ser assaltado. Além disso tudo, tenho que me cuidar para não ser multado. Se vem uma blitz eu pago a eleição de mais um deputado. Meu pobre salário pode me levar a ser mais um sequestrado. É o supermercado, é salário atrasado…Vivo a recordar a vida saudável que eu tinha sonhado.

Se me recusar a tudo enfrentar e em casa ficar, acabo é ficando bem mais estressado. A televisão, o disfarçado inimigo do bom cidadão, atira direto no meu coração. Depois de apertar num simples botão, só vejo a desgraça da população. É crime, é roubo, é fome que o meu pessimismo espantado consome. Sobe água, sobe luz, sobe comida. Meu Deus! O que será da minha vida? Três vezes por semana sobe, agora, a gasolina. Mas que triste a minha sina! Entro sempre em depressão quando cai na minha mão um compromisso não lembrado. Já me fiz acreditar que peguei o bonde errado. Passeando de canoa eu podia ter ficado.

E saudoso e revoltado, eu reajo e resmungo contra tudo deste mundo. Digo que não é normal, que não quero capital, que dispenso a evolução que me agride o coração. Que não adianta tratamento para males que se nutrem do meu próprio sofrimento. Que um dia vou fugir, vou a tudo abandonar. Que a despesa vou pagar mesmo antes de partir. Não consigo esquecer, e nem mesmo esconder, que um futuro canoeiro eu jamais deixei de ser.  

Silvio Cayua

Receba novidades

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *