De repente, como se ao sabor dos acordes de uma velha canção que o transportara a um distante passado, Josué se dera conta do quão estranha a sua vida havia se tornado. Quase nada dos valores que tanto cultuara, além da velha e sempre questionável maneira de pensar, parecia-lhe restar.
De repente, Josué percebera que já não possuía uma simples residência – um cantinho qualquer que fosse, para retornar ao final do dia. Na verdade, sequer uma simples alma perdida à sua volta para com ele tricotar sobre banalidades ao longo das suas tão solitárias madrugadas.
Não mais as relaxantes pedaladas ao anoitecer, ao amanhecer… Não mais as velhas caminhadas à beira-mar, nem mesmo uma desengonçada sombra às suas costas a caminhar quando de frente para um sol nascente estivesse. Nada além de mais um sozinho dentre tantas almas perdidas que lhe cruzavam o caminho.
Não mais qualquer notícia do velho teclado e dos dois violões empoeirados que, ao longo de tantos anos, nas suas horas de tristeza, o haviam acalentado.
De repente, Josué se dera conta de que a sua vida se tornara um imenso tanto faz. Até aquela vaidade decorrente dos hábitos que abraçara, como num toque de mágica, também dele se apartara. Luxos patrimoniais como um bom carro, um bom apartamento, um diferenciado celular pelo melhor dos sinais de internet alimentado, nas águas mansas do passado pareciam haver soçobrado.
Em compensação, Josué também percebera que uma estranha habilidade de no tempo e no espaço se deslocar, nele se havia instalado. Onde quer que estivesse, a qualquer hora do dia ou da noite, mediante um simples impulso mental, cerebral ou sob um determinado gesto que descobrira no dia a dia, ele fluía de um lugar a outro na maior naturalidade, independentemente de qualquer circunstância do ambiente ocupado.
Também percebera que já não se fazia ouvir pelas pessoas que o rodeavam, que elas não reagiam aos toques da sua mão, dos seus dedos, do seu próprio corpo, bem como da sua voz.
E foi nessas idas e vindas ao sabor de um aparente acaso, que Josué chegara a um estranho ambiente, no qual se deparara com o próprio corpo inanimado, depositado sobre uma mesa hospitalar que escorregava por um esguio corredor, tocados por seres cujas faces ele não conseguia visualizar.
Foi quando uma enxurrada de indagações lhe atiçara a mente, fazendo-lhe brotar uma estranha sensação de que, em algum momento da sua existência, ele ali já estivera.
Súbitos arrepios lhe percorriam da coluna lombar à cervical, quando uma grande tela de cinema numa parede frontal passara a lhe mostrar vultos de seres humanos entrelaçados e a deslizarem entre si. E havia luzes brancas de intensidade ofuscante, oriundas de todas as direções, a descarregar seus terminais pontiagudos no seu corpo inerte. Em volta da mesa, outros vultos vestidos de branco e em movimentos agitados a interagir de modo, aparentemente aflito.
Desviando o foco da atenção, como se outra tela passasse a observar, Josué se deparara com a própria imagem conversando com quatro pessoas acerca do motivo da sua estada naquele hospital. E era uma conversa descontraída, divertida… Até o momento em que uma delas teria feito uma pergunta que dera origem ao seguinte diálogo:
– E aí, Josué? Como foi a cirurgia?
– Foi bem, mas… O médico disse que eu teria que ser submetido a uma intervenção cirúrgica complementar.
– Quando?
– Amanhã. Se der certo, retornarei para casa. Se der errado, tchau para vocês!
Em algum momento da tarde do dia seguinte, em meio às festividades comemorativas de mais um ano de existência de uma sociedade filosófica que Josué integrava, anunciava-se o seu falecimento há poucos instantes.
Só então, supõe-se, ele descobrira que havia morrido.
Silvio Cayua
Obs: Conto inspirado em fato, classificado no 1º Concurso – Prêmio Paulo Eduardo Mendes, da Academia Metropolitana de Letras – AMLEF) e publicado na respectiva Antologia, denominada “Luz & Vida” – 23 Ago 2024.
0 comentários